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O olhar de uma Pedopsiquiatra

Chegados a este momento de Pandemia, já se fala que será um momento para sempre registado na memória da humanidade. Para o bem e para o mal, faremos todos parte dessa memória coletiva assim como seremos a referência do que correu bem e também do que correu menos bem. Em Portugal, estando-se num meio ainda sem fim definido, confrontamo-nos com duas situações:

  • Por um lado, uma situação decorrente das semanas de confinamento, instaurado por um estado de emergência nacional, onde a necessidade de cumprimento de evitamento físico obrigou grande parte das famílias a permanecer em casa, mantendo-se a recomendação no estado de calamidade e subsequente desconfinamento. Tal situação conduz a uma acumulação de tensão individual, com tudo o que possa implicar em cada um e nas relações com os outros co-habitantes. Os pais, fundamentais como promotores da harmonia familiar agora e sempre, já vão estando desgastados com a necessidade de administrar várias tarefas ao mesmo tempo de forma perfeita (gestão familiar, laboral dos próprios e escolar dos filhos, sobretudo dos mais novos) para além das alterações abruptas a nível financeiro com que tantas famílias presentemente se confrontam. A tudo o que é exigido pelo ambiente e socialmente a cada adulto, acresce as características de adaptação de cada individuo à pandemia, situação tão exigente pelas inseguranças no presente e as incertezas do futuro, devido ao seu ainda desconhecimento acentuado.

Não obstante, todo este turbilhão de fatores, que vai estando na mente de cada pai/mãe, está também presente em cada filho. Este período de confinamento já de vários meses e não acaba aqui, estando nós no interminável meio, é muito na vida de uma criança, pois o seu desenvolvimento “não segue dentro de momentos”, estamos longe de podermos pôr estes meses dentro de parêntesis; as crianças/adolescentes avançam, crescem e também estão a confrontar-se com as suas inquietações, os seus medos, as suas perdas. Sim. Perderam os seus momentos com os colegas e amigos de brincadeiras e atividades desportivas e festas de aniversários onde aferiam o seu relacionamento e crescimento social. Perderam comemorações tradicionalmente familiares. Passeios em família, até idas às compras! De repente deixaram de poder estar com os avós, quantas vezes companheiros diários de aventuras.
Sentimentos e emoções de todos os lados, os quais, com muita probabilidade, se vão formando numa amálgama de mal-entendidos e rastilho para conflitos pais/filhos. No entanto, sendo os pais os adultos mais isto é-lhes exigido: estarem permanentemente conscientes dos seus sentimentos de insegurança, incerteza e irritação perfeitamente compreensíveis e naturais de existirem perante o contexto externo. Esta auto-consciência será de extrema utilidade para separar sentimentos semelhantes que podem ser despoletados nas interações diretas com os filhos.

  • A outra situação é de um regresso gradual, também incerto mas necessário, ao possível quotidiano. O medo pode imperar e derivar para uma denegação da gravidade real, com o consequente descorar dos cuidados de distanciamento físico, etiqueta respiratória, higiene e bom uso da máscara, tão sobejamente recomendados. Ou derivar para o desespero, com incapacidade de organização do que é controlável e dependente de cada um. É precisamente no que está ao nosso alcance, que deve estar o nosso foco. Orientar o nosso medo, tranformando-o em respeito. Respeito pelas condições sociais presentes. Respeito pelas diretivas que vão exigindo de nós conforme o conhecimento que se vai tendo da doença. O respeito leva à responsabilidade natural de cada indivíduo no cumprimento das recomendações/regras propostas pelas diversas entidades de saúde pública. Cumprimento porque é importante para que tudo corra bem e não porque algo é obrigatório ou proibido. “Vai ficar tudo bem”…sim, mas apenas se cada um fizer por isso. Seguiremos assim num “novo normal”, numa atitude assertiva de cada um, com agregação e consolidação de valores individuais e sociais.

Respeito e responsabilidade presente é indispensável para sentir confiança e alcançar a liberdade consolidada no futuro. Até aqui abordei a situação de pandemia que todos nós estamos a passar, “geração grisalha” e “geração à rasca” (esta autora de um conjunto de manifestações ocorridas em Portugal e outros países no dia 12 de março de 2011) a que acrescento duas gerações que denomino ” ’tá-se” (adolescentes) e “emergente” (desde os que todos dos dias emergem das barrigas das mães até à adolescência). Mas o que se está a exigir de toda a sociedade não será semelhante ao que se exige de uma criança ou jovem no seu crescer? No meio de toda a “pandemia” de exigências dos pais/professores… Os infantes/adolescentes têm que se organizar na sua amálgama de sentimentos e emoções que, por aparecerem sentimentos novos todos os dias também não os conhecem, provocando medo do desconhecido, inseguranças em relação ao que são e o que os outros querem deles no presente e incertezas do futuro, conduzindo quantas vezes a perda do “norte” e devaneios, havendo necessidade imprescindível de orientação parental. Orientação essa que deve ser adotada pelo filho não porque os pais querem ou exigem de forma gratuita e com autoritarismo mas porque é o melhor para si… porque os conhecimentos adquiridos pelos pais ao longo da sua própria evolução assim demonstraram ser mais eficazes, conduzindo os filhos a aceitar tal dos pais por respeito e não por medo, para cada vez mais se tornarem responsáveis no seu estar e ser, ganhando assim a confiança dos pais que lhes permite conquistar a liberdade de vir a ser um adulto íntegro. Do mesmo modo que cada um de nós é responsável pela forma como a situação pandémica vai evoluir em Portugal, todos nós somos responsáveis de como a nossa sociedade se vai concretizar no futuro. Não basta dizer que estas gerações estão perdidas, até porque se o estão deve-se às “gerações grisalha” e “à rasca”, agora avós e pais, que as educa. Estamos nós, adultos, então em bom momento de mostrarmos aos nossos filhos como nos organizamos com estas provações e que sejamos finalmente um exemplo para as gerações “tá-se” e “emergente”. Vamos cumprindo o desconfinamento com responsabilidade, cumprindo as orientações que nos vão sendo transmitidas porque é bom para nós e não porque é obrigatório, tal como queremos que as crianças e adolescentes acedam às orientações de quem os está a ajudar a formarem-se como pessoas. Esta visão integrativa indivíduo/família/sociedade é essencial para uma ação preventiva a nível de saúde mental infantil e da adolescência, da qual não prescindo na minha postura e sistemática atuação como Pedopsiquiatra.

Dr.ª Elsa Martins
Médica Pedopsiquiatra